É estranho. Pensamos
que um homem digno seja aquele que trabalha pela sua sobrevivência, pelo seu
alimento, mas isso é próprio do animal.
E que se ele tiver alimento e outras condições básicas garantidas,
tornar-se-á um parasita, não quererá ir além
disso e perderá a noção de ética.
É estranho porque admite-se que somos seres
muito complexos, inegavelmente capazes de muitas sofisticações inacessíveis aos
outros seres vivos, inclusive, e principalmente, para além da sobrevivência. Então, é contraditório definir a luta pela sobrevivência
– própria dos animais – como elemento definidor da condição humana. E que sem ela cairíamos em prostração.
Pensando bem, isso não vale nem mesmo para animais. Pets não
lutam pela sobrevivência e costumam ser adoráveis.
Podemos sim ter, para todos, a base da sobrevivência
garantida e continuarmos interessados em criar novas soluções e outras sofisticações. Eu iria além.
Essas garantias aumentariam em nós a ânsia pelo específico humano.
O contra-argumento irá certamente pela citação da
possibilidade, já testemunhada por muitos, de pessoas que tiveram uma vida
fácil (garantida) e se acomodaram, ou de famílias muito pobres que após
receberem ajuda financeira sistemática, não se interessaram mais em trabalhar. Mas uma análise um pouco mais acurada desses
casos quase sempre revela confusões, nessas famílias, entre afeto e bens
materiais, e outros discursos duplos, neuróticos. Ou seja, a causa da desintegração seria outra
que não a segurança para a sobrevivência.
Enfim, por essa ótica, talvez seja possível inferir que o
medo em relação a sistemas como o Bolsa-Família seja na verdade o medo de que os
muito pobres se humanizem e deixem de, aos olhos dos mais ricos, parecerem meros
animais.