sexta-feira, 29 de junho de 2012

Cem poemas bonitos do Brasil


17- A máquina do mundo 

                                Carlos Drummond de Andrade


E como eu palmilhasse vagamente
uma estrada de Minas, pedregosa,
e no fecho da tarde um sino rouco 
se misturasse ao som de meus sapatos
que era pausado e seco; e aves pairassem
no céu de chumbo, e suas formas pretas 
lentamente se fossem diluindo
na escuridão maior, vinda dos montes
e de meu próprio ser desenganado, 
a máquina do mundo se entreabriu
para quem de a romper já se esquivava
e só de o ter pensado se carpia. 
Abriu-se majestosa e circunspecta,
sem emitir um som que fosse impuro
nem um clarão maior que o tolerável
pelas pupilas gastas na inspeção
contínua e dolorosa do deserto,
e pela mente exausta de mentar 
toda uma realidade que transcende
a própria imagem sua debuxada
no rosto do mistério, nos abismos. 
Abriu-se em calma pura, e convidando
quantos sentidos e intuições restavam
a quem de os ter usado os já perdera 
e nem desejaria recobrá-los,
se em vão e para sempre repetimos
os mesmos sem roteiro tristes périplos, 
convidando-os a todos, em coorte,
a se aplicarem sobre o pasto inédito
da natureza mítica das coisas, 
assim me disse, embora voz alguma
ou sopro ou eco ou simples percussão
atestasse que alguém, sobre a montanha, 
a outro alguém, noturno e miserável,
em colóquio se estava dirigindo:
"O que procuraste em ti ou fora de 
teu ser restrito e nunca se mostrou,
mesmo afetando dar-se ou se rendendo,
e a cada instante mais se retraindo, 
olha, repara, ausculta: essa riqueza
sobrante a toda pérola, essa ciência
sublime e formidável, mas hermética, 
essa total explicação da vida,
esse nexo primeiro e singular,
que nem concebes mais, pois tão esquivo 
se revelou ante a pesquisa ardente
em que te consumiste... vê, contempla,
abre teu peito para agasalhá-lo.” 
As mais soberbas pontes e edifícios,
o que nas oficinas se elabora,
o que pensado foi e logo atinge 
distância superior ao pensamento,
os recursos da terra dominados,
e as paixões e os impulsos e os tormentos 
e tudo que define o ser terrestre
ou se prolonga até nos animais
e chega às plantas para se embeber 
no sono rancoroso dos minérios,
dá volta ao mundo e torna a se engolfar,
na estranha ordem geométrica de tudo, 
e o absurdo original e seus enigmas,
suas verdades altas mais que todos
monumentos erguidos à verdade: 
e a memória dos deuses, e o solene
sentimento de morte, que floresce
no caule da existência mais gloriosa, 
tudo se apresentou nesse relance
e me chamou para seu reino augusto,
afinal submetido à vista humana. 
Mas, como eu relutasse em responder
a tal apelo assim maravilhoso,
pois a fé se abrandara, e mesmo o anseio, 
a esperança mais mínima — esse anelo
de ver desvanecida a treva espessa
que entre os raios do sol inda se filtra; 
como defuntas crenças convocadas
presto e fremente não se produzissem
a de novo tingir a neutra face 
que vou pelos caminhos demonstrando,
e como se outro ser, não mais aquele
habitante de mim há tantos anos, 
passasse a comandar minha vontade
que, já de si volúvel, se cerrava
semelhante a essas flores reticentes 
em si mesmas abertas e fechadas;
como se um dom tardio já não fora
apetecível, antes despiciendo, 
baixei os olhos, incurioso, lasso,
desdenhando colher a coisa oferta
que se abria gratuita a meu engenho. 
A treva mais estrita já pousara
sobre a estrada de Minas, pedregosa,
e a máquina do mundo, repelida, 
se foi miudamente recompondo,
enquanto eu, avaliando o que perdera,
seguia vagaroso, de mãos pensas.